Carlos Maurício Mirandola – Coordenador da área de mercado de capitais e compliance financeiro do Velloza e Girotto Advogados, é bacharel, mestre e doutor em direito pela USP, e LL.M e JSD candidate pela Columbia University.
Talvez estejamos presenciando o primeiro choque de liberdades públicas em escala global na era do território virtual. De um lado, a liberdade de imprensa 2.0, que envolve jornalistas atuando fora de seus países de origem. Um dos mais respeitados veículos de imprensa da Alemanha recebe de uma fonte sigilosa uma biblioteca de comunicações entre advogados e clientes. Esse veículo comunica-se com seus pares, membros de uma respeitabilíssima rede de colaboração jornalística internacional. O um consórcio jornalístico, formado para investigar temas de relevância global, passa a desenvolver de forma sigilosa um minucioso trabalho de pesquisa e apuração de fatos em diversas jurisdições, tanto para confirmar a autenticidade dos documentos recebidos como para apurar novos fatos a eles relacionados. Um pouco do resultado já foi divulgado no fim de semana que passou, e nas próximas semanas serão revelados mais fatos em matérias jornalísticas cheias de detalhes. Mas o que já foi publicado já é explosivo em bases mundiais: derrubou premiê na Islândia, e obrigou o Kremlin a soltar nota à imprensa, reagindo ao teor das reportagens. Além disso, o relacionamento entre jornalistas e fonte é permeado de mistério e tecnologia: as comunicações foram todas encriptadas, e foi criada uma plataforma virtual, acessível pelos diversos times de jornalistas espalhados pelo mundo, para que cada time pudesse fazer seu trabalho de mineração de documentos em sigilo.
Do outro lado, a privacidade 2.0, que envolve a proteção do anonimato num mundo cada vez mais cibernético. Direitos de privacidade são direitos contra a tirania de Estados, de maiorias e de terceiros. A própria idéia de se permitirem investimentos offshore nasceu, em grande medida, de fins libertários. Pode-se vincular o surgimento de paraísos financeiros contemporâneos a reações à repressão totalitária. Atendo-se apenas ao crescimento da linha de negócio do Mossack Fonseca, por exemplo, tem-se que o florescimento do grande mercado offshore de euro-dólares nos anos 60 do século passado deu-se em grande medida por causa tirania de Estados totalitários. Este mercado bebeu em duas fontes. A primeira foram os recursos preservados por vítimas dos nazistas. Para evitar a expropriação e a perseguição, judeus, ciganos e outros povos perseguidos confiavam fundos e riquezas a correspondentes e bancos estrangeiros. A segunda foram os burocratas e empresários sob a zona de influência da cortina de ferro, que escondiam dos respectivos “grandes irmãos” os caraminguás suados, resultantes de suas atividades econômicas. O embargo leste-oeste, este muro financeiro-comercial entre o ocidente e o oriente, gerou a necessidade do reconhecimento de jurisdições que não fossem nem lá, nem cá. À época, eram contas numeradas e trusts; o dinheiro era depositado fisicamente nas agências dos bancos e se movimentava por telex e correspondentes bancários; as relações eram pessoais, e os documentos eram entregues via malote. Hoje, as transações são criptografadas e se realizam em milissegundos; empresas e fundos são abertos remotamente, por certificação digital e formulários eletrônicos; e clientes conversam com banqueiros e advogados via email, enviando documentos como attachments.
Como toda tecnologia, as inovações jurídicas e financeiras envolvidas na criação dos paraísos bancários offshore, que protegem o anonimato e privacidade dos oprimidos desde os anos 60 até hoje, são frias e despersonalizáveis. Por isso, terroristas, fraudadores corruptos e sonegadores puderam se aproveitar da liberdade das “nowhere lands” criadas. A mesma tecnologia, no entanto, permite que jornalistas cooperem entre si, cruzem informações em diversas línguas, em assustadores volumes, no nível das transações, o que seria impensável anos atrás. Documentos são replicados e distribuídos à velocidade dos bits nos cabos óticos inter-oceânicos. Repórteres em cantos remotos do mundo podem levantar fatos e documentos relativos a pessoas com quem nunca tiveram contato; podem, inclusive, derrubar governos – ou, melhor dizendo, podem informar cidadãos de nacionalidades outras que as suas de desmandos de seus governantes.
A discussão interessante, agora, é o limite da liberdade de imprensa 2.0 e da privacidade 2.0. Para o bem ou para o mal, no entanto, jornalistas estão longe de serem investigadores legitimados pelo poder do(s) Estado(s). Seu trabalho é “investigativo” entre aspas – não é regido pelo devido processo legal, não se submete a regras de produção de provas (de invalidação de sua coleta), ou mesmo pelo princípio da verdade, muitas vezes. Com um “clique”, o jornalista investigativo pode devassar documentos e comunicações privilegiadas de quem ele quiser – inclusive de pessoas cuja vida ou atos não sejam de interesse público. Esse tipo de poder só se justifica, quando muito, se não punir cidadãos privados e se limitar à busca de fatos para alimentar o debate vigoroso e a informação na esfera pública. O equilíbrio, entre quais instrumentos e quais informações que a imprensa da era digital pode alcançar, e quais ela pode divulgar, ainda está sendo escrito e dependerá de cada comunidade política. Por isso, é bem provável que em alguns países os “Panama Papers” levem à punição de agentes públicos e pessoas privadas; em outros, em indenização pela quebra de confidencialidade. Em alguns, que os documentos levantados sejam considerados “públicos” e, portanto, levem a investigações; em outros, que sejam considerados frutos da árvore envenenada e, portanto, inviabilizem investigações criminais.
O debate vigoroso dessas questões só está começando. Que seja feito na esfera pública. Ou melhor: publicamente, na web 2.0.